Espiritualidade NÃO é sofrimento!

O sofrimento dignifica?

A crença de ser dignificado pelo sofrimento, de se tornar merecedor de algo após sofrer o suficiente para aquilo, vem de uma ilusão claramente útil para aqueles que jogam com o poder. Em anos de história, impérios se mantiveram aliados à religião, protegidos por sua fé, e a base deste sistema é a crença no sofrimento como purificador, dignificante para a alma e a mente.

O poder não gosta de ser questionado, e a melhor forma de não ser questionado quando se encontra em uma situação de superioridade social é simplesmente fazendo o questionador crer que não deve questionar, pois questionar é errado. Assim eles vencem a luta antes mesmo de entrar em campo de batalha.

No ocidente houve com o cristianismo em diversas formas ao longo da história, e principalmente na sua forma imperial européia, a identificação da fé do povo com um Deus portado em uma forma torturada, ensanguentada e desfigurada. O simbolismo é uma linguagem universal, e para estes foi muito bem comunicado que o sofrimento, o sacrifício e a humilhação de alguma forma divinizam as pessoas. Logicamente existiam versões diferentes do mesmo Deus, estampadas em coroas, marchas exultantes tocadas com trompetes e igrejas feitas em puro ouro, cruzes cravejadas de pedras preciosas mas apenas para algumas pessoas, os nobres e o próprio clero.

A crença útil no sofrimento do camponês médio continua presente em muitas doutrinas dogmáticas confundidas com espiritualidade, até mesmo no espiritismo católico, que tomou a palavra hindu “karma” (de forma totalmente diferente dos hindus) para continuar com uma crença por vezes patologicamente sádica no sofrimento como via de salvação.

Pior foi o que fizeram com a alegria ao longo da história, sendo condenada em todo tipo de sistema de poder psicológico e político. Geralmente quando o interesse é muito forte em controlar as pessoas a primeira coisa a cortar é seu interesse sexual. A energia sexual na prática não é controlável por morais, especialmente externas.

Na Ásia, extremo oriente, as ideias confucianas foram utilizadas de forma igualmente dúbia. Para os nobres o escolasticismo e a ritualística, direito de casar com várias mulheres e propriedades; para os de classe inferior a cega obediência filial, o sacrifício, a castração imediata de suas ambições, pois “não deve o filho de um vendedor de tofu querer ser maior que seu pai, pois isso o humilha” segundo os Analectos confucianos. Fato é que quem não supera seus pais de alguma forma não os honra, mas o mais importante para o sistema é que permaneceria com os deuses e os reis de seus pais, e jamais os questionaria.

O confucionismo foi igualmente utilizado por imperadores e governantes na China, no Japão, na Coreia, Tailândia e toda a Ásia para justificar o sistema de poder e as castas familiares. Outra frase dos Analectos de confúcio, cujos ensinamentos 孝心 sobre sacrifício pelos mais velhos e sofrimento filial como virtudes sempre foram repetidos historicamente por toda Ásia, termina assim: “O soberano ou o superior hierárquico deverão ser respeitados como respeitados são o pai ou o irmão mais velho”. Coincidência?

Seja como for, o importante é poder perceber após tantos anos, que na era da internet e de notícias que nos colocam de frente com o sofrimento do mundo inteiro, guerras, desigualdade extrema e tantas coisas ruins é que não, o sofrimento não dignifica nada nem ninguém, pois se tem algo comum ao ser humano em toda parte do mundo é sofrer. Isso não deixa o mundo mais digno, bonito ou espiritualizado, na maior parte das vezes ocorre o contrário.

Da mesma forma que a alegria e a realização não conduzem alguém a ser bom, o sofrimento é apenas uma experiência. É claro que é nossa responsabilidade significar os sofrimentos e alegrias de nossas vidas, aprender com eles e fazê-los úteis, mas este é um trabalho particular, de cada um, e a maioria não o faz, seja na alegria ou na tristeza.

É possível, e necessário, aprender com o sofrimento da mesma forma que com a alegria. O sofrimento em si não ensina nada a ninguém. Pessoas podem sofrer horrores e continuarem as mesmas ou se tornarem piores. Pessoas inteligentes podem sofrer humilhações e pobreza e não se tornarem nem gênios nem produtivos, e ao contrário, ainda perder as oportunidades de utilizar sua inteligência de forma útil em sua sociedade para o bem de todos.

O sofrimento não dignifica por si, a alegria não corrompe por si, nem vice versa. Sentimentos são experiências que temos nesta vida, neste corpo, dentro de determinado espaço de tempo em determinada sociedade. Pode-se aprender com lágrimas e com sorrisos. Às vezes é uma questão de escolha, tantas outras vezes não.

O que não podemos mais é permitir que a falácia do “sofrer é bom”, ou o mito do divino sofredor norteiem nossa vida e nossa espiritualidade, pois além de serem negativos conosco e desempáticos com os outros, proporcionam apoio à um sistema milenar opressor de ganhos desequilibrados, de exploração e desigualdade, estes sim, velhos males do mundo.

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