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A demonologia só existe para o cristão
O que hoje em dia se tem por demonologia é simplesmente um conjunto de crenças herdeiras do catolicismo e de crenças ocidentais misturadas ao longo de diferentes períodos históricos. Não tem, nem deve ter, qualquer relevância para quem não segue e pratica uma espiritualidade cristã fundamentalista.
A história de Lúcifer como “anjo caído” ou “revoltado”, além de ser um crime histórico de erros de interpretação e imprecisão linguística, é também uma conveniente crença no mal, no adversário e no pagão, ou seja o não-cristão, como algo maligno, caído e vencido, explicamos isso aqui.
A narrativa da demonologia também é absurda para o próprio cristianismo gnóstico e esotérico, onde Lúcifer aparece como aquele que se sacrificou para guiar o ser humano à àrvore do conhecimento, que lhe tinha sido negado, e que deu o fogo, não apenas físico mas espiritual; aquele que diferencia o homem do animal, e nos coloca definitivamente como seres capazes de trilhar e evoluir na árvore da vida.
Como dizia Eliphas Levi em seu livro de “Doutrina Transcendental da Magia” na parte II: “ – O Lúcifer da Kabalah não é um anjo amaldiçoado e arruinado; Ele é o anjo que ilumina, que regenera pelo fogo; Ele é para os anjos da paz o que o cometa é para as estrelas numa constelação primaveril”.
O pior dessa narrativa de demonologia é o fato de fingir que a bíblia (livro que eles muito citam, juram seguir e pouco conhecem) tem alguma história de batalha “no céu”. Eles gostam de imaginar um UFC angélico com lutas entre o bem e o mal, no melhor estilo desenho animado para adolescentes.
No entanto, ao contrário do que é nas artes e até nos desenhos, essa narrativa é simplesmente fruto da incapacidade cognitiva de conceber um mundo, uma espiritualidade e principalmente uma individualidade que não esteja ligada à dicotomia do bem e do mal. É muito mais simples quando alguém nos ensina o que é bom e o que é ruim, o que pode e o que não se deve.
Pancadaria de anjos x demônios: o efeito mandela na demonologia
A história de guerra astral entre anjos é conhecida no Livro de Enoque, um livro cujos manuscritos datam de centenas de anos após a formação da própria bíblia católica, por isso não está incluso nela. O livro de Enoque no entanto, assim como o “Paraíso Perdido” de Milton e as visões do inferno narradas por Dante Alighieri, criaram no ocidente uma certeza de memória que é falsa, inexistente. Muitas são as pessoas que juram de pé junto que as guerras celestes são bíblicas, só para procurarem envergonhadas por passagens que nada falam sobre isso e tentam utilizar para justificar suas crenças, porque foi a história que o padre ou que o pastor contou.
Isso faz parte do que se chama Efeito Mandela, quando uma narrativa se torna tão popular que se transforma em uma espécie de memória coletiva falsa. Acontece com diversas coisas no mundo, e uma delas é o fato de que mais da metade das pessoas que gostam da canção “Call me Maybe” acham que ela é da cantora Taylor Swift, enquanto quem canta é Carly Rae, uma cantora canadense que surgiu bem antes da primeira, estourou com essa música e não emplacou mais sucessos.
O efeito Mandela é comum na cultura popular e poderíamos dar diversos exemplos ao longo da história e cultura pop modernas, e a demonologia está em sua raiz, infestada deste efeito.
Tenha em mente que nomes que “demonólogos” falam são corruptelas de nomes de deidades de outras religiões, demonizados pela religião dominante da época, e além de não serem bíblicos (se fossem também não teriam qualquer relevância) nem existiam nos primeiros mil anos de cristianismo.
Belial, por exemplo, é citado assim como Azazel no livro de Enoque, apenas. Astaroth é uma corruptela do nome de Astarte, como Bael é uma corruptela do nome Baal, ambos deuses da antiga Canaã, e só aparecem pela primeira vez na história em livros como Dragon Rouge, Grimorium Verum e as Clavículas de Salomão, todos livros cujos manuscritos mais antigos datam do período medieval.
Demonologia na era medieval
O período medieval, cuja mentalidade persiste naqueles que julgam sua fé superior à dos outros e insistem em condenar suas crenças com base na palavra de “autoridades” sem quaisquer relevância fora da que eles próprios dão, foi o período de criação da demonologia.
Compêndios do que se chama de demônios eram muitos comuns na época. Isso por três motivos, dois que são históricos e um cuja historicidade é impossível confirmar ou negar, mas que tem relevância prática:
1. O primeiro foi a proliferação do chamado Diabolismo, um culto de chamados demônios dentro da própria igreja, e do uso da imagem de Satanás e deuses que eram chamados de anjos caídos por não terem se curvado ao deus que eles acreditavam ser o único.
O Diabolismo ficou conhecido especialmente na Europa central, foi quase febre na Italia e na França, e era amplamente praticado dentro da igreja e no clero, especialmente por frades franciscanos e carmelitas. Chegou a haver uma tentativa de dizer que o culto ao diabo e o uso de demônios e magia não eram “pecado” já que faziam parte de Deus.
Histórias documentadas nos arquivos do vaticano e por historiadores respeitados narram esta época conturbada, e sugiro a leitura do estudo “The Demons and the Friars: Illicit Magic and Mendicant Rivalry in Renaissance Bologna”, documento que é disponível para compra em pdf pela biblioteca online da universidade de Cambridge.
O que surgiu depois dessa tentativa frustrada de instaurar uma “heresia”, moldou a história, a demonologia e a mente de quem acredita nela até hoje.
2. A “santíssima” inquisição apareceu com manuais, o mais famoso deles o Malleus Maleficarum, onde detalhava práticas absurdas e imaginadas, e cita diversos nomes “demoníacos” para o público pela primeira vez.
Outros livros e manuais da época deram o tom sombrio à tudo que era proibido, e até mesmo o Shabath, dia sagrado dos judeus (também perseguidos pela inquisição) foi incorporado para designar uma festa demoníaca onde mulheres nuas beijavam as nádegas do demônio. A ignorância, a violência e a opressão reinaram na Europa e em todo lugar que descendia dela (inclusive o Brasil).
3. O que não se pode provar historicamente, porém tem relevância prática já que causa consequências históricas diretas é a narrativa de que a Ordem dos Cavaleiros Templários se tornou extremamente poderosa na Europa, abriu os primeiros bancos da história, fazia concessão de dinheiro, títulos e terras e se tornou uma ordem esotérica e iniciática em si.
Eles tiveram acesso à um cristianismo diferenciado, gnóstico e aprendido de diversas fontes diferentes ao longo das cruzadas e inúmeras peregrinações, além de possuir uma elite intelectual e bélica que falava diversas línguas, e portanto tinha acesso a muito mais que o clero comum.
É dito que o gnosticismo era praticado e acreditado pelos Templários, que diziam ser Lúcifer, assim como repetem os Kabalistas e Helena Blavatsky, o trazedor da luz, que trouxe a luz do conhecimento e da consciência para o ser humano. Após os templários serem exterminados pela junção inseparável Clero-Nobreza da Europa, suas doutrinas também foram banidas, e o nome Lúcifer se tornou um “frisson” com tentativas cada vez mais fortes, no período medieval, de ligar Lucifer ao demônio e ao maligno.
Essa é a raiz da demonologia. Erros de tradução, perseguições e absurdos históricos, catolicismo e mistura de narrativas independentes e muita falta de informação. Essa demonologia hoje em dia ainda é creditada, pois soma-se à tudo já citado a vaidade moral de se sentir superior, o Efeito Mandela de se ter uma narrativa histórica de algo que nunca existiu, e especialmente a tremenda ignorância de quem não tem a capacidade de ver o mundo e a si mesmo com algo além do bem e do mal. Como é cinza a visão que nos impõe o certo e o errado! Quem de cinzas vive já vive no inferno, e se nos outros vêem demônios é apenas consequência do próprio olhar.